A esta altura, a importância da abertura de dados já é lugar comum a gestores, pesquisadores e outros profissionais que trabalham com informação governamental. Após mais de uma década de expansão desse movimento, os benefícios são celebrados mundo afora. O impacto econômico é positivo: a União Europeia estimou ganhos de € 325 bilhões no período de 2016 a 2020, além da criação de empregos e redução de custos com o ganho de eficiência na gestão pública[1]. O impacto social inclui a melhoria nos processos de governança democrática, empoderamento dos cidadãos e a resolução de problemas públicos[2].
Abrir dados é mais do que apenas publicar bases de dados. A definição de dados abertos abrange oito princípios[3], mas três ideias são centrais: os dados precisam ser reutilizáveis, acessíveis e disponíveis sob uma licença livre. Isso significa que as máquinas podem lê-los de maneira automatizada, sem necessidade de autorização. Podem estar em planilhas ou em APIs – mecanismos que permitem que um programa os consuma “direto da fonte”, sem intervenção humana.
Também ganham força as preocupações, como a necessidade de proteção de dados pessoais e o déficit tecnológico dos governos para lidar com quantidade massiva de dados (ou “Big Data”). O Brasil deve superar os obstáculos presentes e, ao mesmo tempo, se preparar para o futuro. Os nove desafios listados a seguir são os principais deles.
1. O básico – planejar e abrir
O Brasil aparece bem no ranking internacional de dados abertos, o Open Data Index[4]: ocupa a oitava posição entre 94 nações. Puxam essa nota para cima os dados estatísticos e orçamentários. Para baixo, pesa a falta de dados geográficos, como endereços e códigos postais, de propriedade fundiária e de empresas. Aqui, houve avanço recente com a abertura, pela Receita Federal, da base de sócios das empresas, após determinação da Controladoria Geral da União (CGU). Esta, porém, é apenas a ponta do iceberg: muitos dos dados fundamentais estão nos âmbitos estadual e municipal, e não se sabe sequer que sistemas e bases esses governos têm sob sua guarda. Alguns municípios criaram Catálogos de Bases de Dados e de Sistemas, como a cidade de São Paulo faz desde 2014. No governo federal, os órgãos elaboram planos de abertura de dados, monitorados pela CGU. Essas boas práticas deveriam ser regra em toda a Administração Pública.
2. Ativação do ecossistema
Planejar a abertura inclui conectar os dados à demanda – conhecer as necessidades dos diferentes setores, mesmo dentro da própria administração. Parte essencial do trabalho, portanto, é “ativar o ecossistema” para garantir que os dados abertos gerem o valor esperado, ajudando a resolver problemas concretos (de moradia, de saúde, de educação etc.). O conceito de governo aberto implica abrir, além de dados, processos. Promover a colaboração entre governo, sociedade civil, academia, empresas. Os “hackathons” – maratonas de programação para desenvolver aplicativos – mostraram o potencial dessa colaboração, tendo seu auge mundial entre 2010 e 2016. O Challenge.gov, nos Estados Unidos, criado em 2010 e ainda ativo, é um bom exemplo desse processo. No entanto, se isolado, esse tipo de ação não garante a sustentabilidade das ideias e dos protótipos gerados.
3. Legislação mais robusta
Embora leis não garantam sozinhas a implementação de políticas, a Lei de Acesso à Informação brasileira (Lei Federal nº 12.527/2011) trouxe avanços ao regulamentar, com prazos, mecanismos e responsáveis, um direito já estabelecido na Constituição Federal de 1988. Mas a lei não é contundente sobre o formato aberto dos dados e os instrumentos como os planos e catálogos de dados. França e Alemanha já os exigem por lei, e os Estados Unidos a sancionaram em janeiro de 2019, após ampla movimentação da sociedade civil. A Lei de “Políticas Públicas baseadas em evidências” estabelece dois princípios básicos: 1) informação pública tem que ser aberta por padrão, em formato legível por máquina, desde que não apresente riscos à privacidade ou à segurança; e 2) os órgãos públicos federais devem usar ‘evidências’ ao fazer políticas públicas. Legislar sobre o que deveria ser óbvio é uma forma de evitar retrocessos em tempos em que a desinformação e as “fake news” extrapolam as fronteiras das redes sociais e vão parar nos discursos oficiais.
4. Capacidades estatais
A lei dos EUA também formalizou a figura do Chief Data Officer (CDO) em cada órgão público, para abrir dados e garantir a proteção de dados pessoais – algo que falta ao Brasil. Para fortalecer as capacidades estatais, além de pessoas, também é fundamental investir em infraestrutura: como armazenar e processar dados, em quantidades cada vez maiores, em servidores próprios? Como licitar e implementar computação em nuvem no serviço público? Municípios e estados precisam investir em processos de governança de tecnologia que permitam um tratamento transversal e integrado em seus diferentes departamentos. Sistemas devem ser construídos pensando a privacidade e a abertura de dados desde sua concepção.
5. Cultura institucional
A burocracia técnica também precisa de um empurrão em direção à abertura – o padrão do setor público ainda é a opacidade. Recentemente, a discussão em torno da necessidade de abrir dados da Previdência para subsidiar o debate de propostas foi bastante reveladora. A ideia de que as pessoas “vão interpretar os dados mal” – argumento utilizado pelo Ministério da Economia para justificar o sigilo – é ainda corriqueira em todo o mundo. Integrantes da comunidade internacional de dados abertos chegaram a criar uma brincadeira com as falácias mais comuns no setor público, o “Open Data Bingo”[5], reunindo argumentos muitas vezes válidos, mas sempre superáveis com estratégias já conhecidas.
6. Ciência de dados e inteligência artificial
Os sistemas governamentais coletam diariamente grande volume de dados em sensores, radares, sistemas de pagamentos, de serviços – mas a utilização para desenho e avaliação de políticas é subaproveitada. Seu uso poderia ser combinado com outras fontes, governamentais ou privadas (por exemplo, o aplicativo Waze disponibiliza uma API de seus dados para análises). Não é raro que dados de bilhetagem dos ônibus sejam apenas utilizados para calcular o pagamento das empresas prestadoras, mas não para planejar a operação das linhas e oferecer um serviço mais adequado. Aqui também há espaço para colaboração intersetorial. Plataformas como a Kaggle[6], que promove competições globais para resolução de problemas por cientistas de dados, têm sido exploradas pelo setor privado e podem ser utilizadas pelo setor público como um desdobramento de maior alcance da ideia de “hackathons”.
7. Algoritmos abertos
A outra face do uso da ciência de dados e de algoritmos é o perigo de reforçar discriminações ou gerar distorção com vieses. Algoritmos são as regras, ou o “passo-a-passo”, com as quais os sistemas tomam decisões programadas sobre serviços, direitos, cálculos de impostos, nos mais diversos domínios das políticas públicas. O governo da França tem um programa de publicação de algoritmos impulsionado pela legislação nacional e regional recente e implementado por seus órgãos públicos com apoio do Etatlab, seu laboratório de inovação e governo aberto[7]. Após debate acalorado, a Corte Constitucional francesa deu a palavra final: sem transparência dos algoritmos, nenhuma decisão administrativa que afeta a vida dos indivíduos poderá ser 100% automatizada. Mais que a abertura de dados a vida pública mediada por máquinas e inteligência artificial requer a abertura dos algoritmos, isto é, do raciocínio codificado nesses mecanismos.
8. Proteção de dados pessoais
Abrir dados públicos e proteger dados pessoais não são políticas antagônicas – pelo contrário, a transparência sobre os processos de tratamento desses dados ajuda a proteger a privacidade. A União Europeia impulsionou a discussão ao aprovar sua legislação regional, a GDPR – General Data Protection Regulation. No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados foi aprovada em 2018 e entra em pleno vigor em agosto de 2020. Sem preparação, o risco é que as novas regras engessem a abertura de dados – na dúvida, o imobilismo pode ser o caminho mais fácil. Órgãos públicos deverão adotar estratégias de avaliação de benefícios e riscos da abertura de dados. A cidade de Seattle, nos EUA, que já tinha uma política de dados abertos sólida, determinou em 2016 que nenhuma base de dados será publicada sem passar antes por uma avaliação de risco e estratégias de mitigação.
9. Soberania de dados
Com a promessa da eficiência, as políticas de “cidades inteligentes” também trazem ameaças à privacidade e à chamada “soberania de dados”. A depender de como são implementadas, as tecnologias que mediam esses serviços podem ser centralizadoras e fechadas, criando dependência de fornecedores e dificuldades de integração entre sistemas. A ideia de dados como “bem comum” e do uso de tecnologias abertas para operacionalizar essas políticas norteia a Estratégia Digital da Prefeitura de Barcelona[8]. Outro desafio é a privatização de serviços públicos – privatizando, junto, dados essenciais. O autor Robert Kitchin[9] destaca que, sem garantias, esses processos privam o Estado de dados relativos à vida nas cidades, como os de mapas detalhados, transportes, setor energético e de abastecimento de água.
Longe de esgotar o tema, esses nove desafios representam um início de conversa. A vantagem de começar tarde é aprender com o que já foi feito – bem, ou mal – no mundo. Os dados estão na mesa.
[1] Estudo realizado pela Comissão Europeia, disponível em: https://www.europeandataportal.eu/en/highlights/creating-value-through-open-data.
[2] O GovLab, da New York University, reuniu casos de impacto dos dados abertos: http://odimpact.org.
[3] Os princípios podem ser acessados em: https://opengovdata.org.
[4] O mais atual é do período 2016-2017 e está disponível em: https://index.okfn.org/place.
[5] Uma versão em italiano está disponível em: http://gbonanome.github.io/opendatabingo.
[7] Disponível em: https://etalab.github.io/algorithmes-publics.
[8] Disponível em: https://ajuntament.barcelona.cat/digital/es/transformacion-digital
[9] Kitchin, R. (2018). ‘Data-driven urbanism’ in: Kitchen, R., McArdle, G. and Lauriault, T. (eds) Data and the City. London: Routledge. p.44-56.
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